‘Passaportes de imunidade’ são o novo desafio para países e empresas em 2021
Imagine a seguinte cena: estamos em meados de 2021, as pessoas chegam ao aeroporto ou fazem fila para assistir a um show ou a um jogo de futebol. Pegam os telefones e acessam um aplicativo que confirma se eles tomaram a vacina contra o coronavírus ou fizeram o teste e passam pelos portões. Esse é o admirável novo mundo que as empresas contemplam enquanto a humanidade embarca no maior programa de vacinação em massa da história.
Em dezembro, o Reino Unido se tornou o primeiro país a aprovar a vacina da Pfizer e da BioNTech, seguido pelos Estados Unidos, Canadá e outros países. No entanto, mesmo com o fim da pandemia à vista, governos e empresas terão que enfrentar alguns desafios logísticos, tecnológicos e legais sem precedentes nos meses que se aproximam.
Até o final da primavera, as doses serão escassas, o que significa que o futuro imediato será definido pelos ricos e pelos pobres: pessoas encorajadas a sair de casa com a imunidade induzida pela vacina ou pela própria doença e aqueles que ainda estão esperando na fila pela picada no braço. Fala-se cada vez mais sobre o uso dos chamados passaportes de imunidade para fazer as economias se movimentarem novamente. Sem tempo a perder, os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido estão avançando firmes com soluções de baixa tecnologia, como comprovantes de vacinação em papel.
Nadhim Zahawi, ministro do Reino Unido para a implantação do programa de vacinas, provocou protestos no final de novembro quando disse que restaurantes, bares, cinemas e arenas esportivas poderiam pedir às pessoas que exibissem comprovante de vacinação antes de entrar. Isso levantou o espectro de uma sociedade composta por duas camadas, o que obrigou Zahawi a desistir da ideia.
Alan Joyce, diretor executivo da companhia aérea Qantas Airways, iniciou um debate global sobre passaportes de imunidade no mês passado, quando disse que o comprovante de vacinação seria uma condição para viajantes que entram ou saem da Austrália em seus aviões. Joyce discutiu a ideia com outras companhias aéreas, e é provável que isso se torne uma exigência de pré-embarque em todo o mundo, disse ele durante uma aparição na TV.
Por enquanto, não existe um sistema internacional para verificar se alguém tomou a vacina. A Organização Mundial da Saúde está trabalhando em um certificado eletrônico de vacinação. Mas isso levará tempo, porque há uma infinidade de problemas para serem resolvidos. Eis aqui um deles: se os países exigem vacinação para a entrada – a provável perspectiva para qualquer viagem futura – o que acontece quando um cidadão russo chega a Londres alegando ter sido vacinado com a vacina Sputnik V, que não foi aprovada no Reino Unido?
Existem outras razões para que se prossiga com cautela. Os cientistas ainda não sabem por quanto tempo as principais vacinas fornecem proteção ou se interrompem a transmissão do vírus. As vacinas pioneiras são altamente eficazes na prevenção de doenças, mas não está claro se indivíduos vacinados ainda podem se contaminar ou infectar outros. “A vacinação pode proteger o indivíduo, mas não seus contatos”, diz Emily Hyle, médica infectologista do Massachusetts General Hospital em Boston. “Precisamos de mais informações antes de usar o status de vacinação para mudar as orientações sobre o uso da máscara facial e o distanciamento social.”
A vacina contra a febre amarela é a única imunização exigida para viagens a certos países de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional da OMS, uma regra familiar aos viajantes experientes que acabam acumulando uma coleção de carteirinhas de vacinação amarelas e esfiapadas. A OMS teria que modificar as regras para uma vacina contra a covid-19 – um processo longo e complicado que envolveria todos os seus 194 países membros.
Os governos estão apostando em um número suficiente de pessoas ansiosas para tomar a vacina para que possam retomar com segurança suas vidas diárias, permitindo-lhes contornar a necessidade de autorizações. “Todos nós que trabalhamos na saúde pública preferimos evitar a vacinação obrigatória”, disse Mike Ryan, chefe do programa de emergências da OMS, em uma entrevista coletiva em Genebra, em dezembro. “Estamos muito melhor servidos para apresentar às pessoas os dados, os benefícios e permitir que as pessoas decidam por si mesmas”.
Tom Frieden, ex-chefe dos Centros de Controle de Doenças dos Estados Unidos, argumentou que os certificados de imunidade serão inevitavelmente desenvolvidos, apesar dos obstáculos. Embora haja um precedente para as escolas exigirem certas vacinas, pode haver desafios legais se os estados ou empresas o fizerem, diz Allison Hoffman, professora de direito e especialista em políticas de saúde da Universidade da Pensilvânia. A vacinação obrigatória pode ser contestada em tribunal como uma violação da liberdade religiosa e proteções contra a discriminação.
“Esse é realmente um território desconhecido”, diz ela. “As empresas privadas podem colocar restrições gerais à participação. Protocolo de vestuário para entrar em uma academia ou restaurante, por exemplo: pessoas sem camisa, ou sem calçados, não serão atendidas. Há uma justificativa ainda mais convincente caso haja uma razão de saúde pública para essas limitações.”
Na ausência de diretrizes governamentais, empresas destruídas pela pandemia estão pesquisando como usar vacinas e testes para restaurar a confiança do consumidor. A indústria aérea mundial, que enfrentará 157 bilhões de dólares em perdas até 2021, está abrindo caminho com experimentos digitais de aplicativos concorrentes que exibem os resultados dos testes e, em breve, o histórico de vacinação.
A maioria funciona da mesma maneira: uma clínica ou laboratório médico certificado carrega os resultados dos testes ou registros de inoculação em um aplicativo que gera um código QR para apresentar no check-in ou na imigração sem revelar informações particulares ou confidenciais. Alguns dos aplicativos utilizam a tecnologia blockchain para permitir que os usuários mantenham a privacidade enquanto compartilham dados, e ao mesmo tempo, em outros, os dados podem ser armazenados em um depósito central ou nos telefones das pessoas.
A IATA, Associação Internacional de Transportes Aéreos, o lobby mundial das empresas aéreas, está trabalhando em seu próprio aplicativo móvel chamado Travel Pass, que está testando com a British Airways, controladora da IAG este ano, antes que chegue os dispositivos Apple e Android no primeiro trimestre de 2021, diz Nick Careen, vice-presidente sênior de carga e segurança de passageiros de aeroportos da organização. É baseado no existente sistema IATA Timatic, usado por companhias aéreas e aeroportos, incluindo Heathrow, para verificação de documentos como passaportes, o que pode lhe dar uma vantagem sobre os concorrentes.
A IATA não tem a intenção de ter um monopólio. “Nosso sistema não foi feito para ser a única alternativa disponível”, diz Careen. “Será tudo muito confuso antes que as coisas sejam interoperáveis e harmonizadas.”
Isso parece certo, a julgar pelo número de aplicativos que já disputam uma fatia do mercado. A International SOS, empresa francesa de segurança em viagens, desenvolveu o AOKpass com duas startups de Cingapura para exibir registros certificados de testes. Apoiado pela Câmara de Comércio Internacional, o AOKpass está sendo usado pela Etihad Airways em voos entre Abu Dhabi e Karachi e Islamabad, no Paquistão, rotas que o emirado queria restabelecer para devolver com segurança os trabalhadores que deixaram quando as regras de imigração foram endurecidas como parte de um esforço do governo para conter a propagação da covid-19. O aeroporto de Roma também está usando esse aplicativo em seus voos para Atlanta e Nova York.
O cofundador da International SOS, Arnaud Vaissie, diz que espera que os sistemas sejam construídos corredor a corredor, com muitos governos exigindo prova de vacinação ao cruzar as fronteiras. As empresas também estão usando o aplicativo para rastrear trabalhadores em locais remotos, como plataformas de petróleo e minas. Os passaportes digitais de imunidade ajudariam a combater a falsificação de registros médicos. “O objetivo de se tornar digital é que tudo possa ser rastreado e seguro”, diz ele.
Talvez o participante mais surpreendente nessa arena seja uma organização suíça sem fins lucrativos apoiada pelo Fórum Econômico Mundial que desenvolveu um aplicativo digital de saúde chamado CommonPass . Ele está sendo implantado por algumas das maiores companhias aéreas do mundo, incluindo JetBlue , Lufthansa , Swiss International , United e Virgin Atlantic em voos para Nova York, Boston, Londres e Hong Kong.
A organização suíça sem fins lucrativos, Commons Project Foundation, se envolveu em março, quando começou a trabalhar em um plano para amenizar o caos no trânsito que obstruía as passagens críticas da fronteira do Quênia. A tecnologia permite aos motoristas de caminhão que entregam produtos essenciais mostrar resultados de testes certificados em seus telefones celulares de modo a obter acesso aos países vizinhos. O CEO, Paul Meyer, vê o CommonPass sendo usado em remessas, escolas, hotéis e salas de concertos. Ele até conversou com o governo japonês sobre como usá-lo nas Olimpíadas do verão de 2021. “Os registros de vacinação não são algo que as pessoas precisam apenas para entrar em um avião, mas também para se matricular na escola”, diz ele. “Há uma necessidade real de um modelo global.”