O que, de fato, foi aprovado
Tenho acompanhado de perto as discussões sobre a Reforma Tributária, uma colcha de retalhos que tem deixado muitos profissionais, gestores públicos, perdidos e à margem do processo de regulamentação, impedindo tomar decisões assertivas para “seus” municípios. Então pensei em escrever um artigo sem a corriqueira linguagem jornalística mas com conteúdo mais objetivo, técnico e oferecendo um caminho aos municípios tocantinenses para sua implementação.
A Reforma Tributária sobre o consumo foi constitucionalizada pela Emenda Constitucional 132/2023, e já tem mais de 1.200 emendas para a sua regulamentação, que substitui ICMS, ISS, PIS/Cofins e IPI por IBS (estadual/municipal), CBS (federal) e Imposto Seletivo (IS). O IBS é de competência compartilhada entre Estados e Municípios, com arrecadação centralizada e distribuição via Comitê Gestor do IBS (CG-IBS).
A regulamentação geral virou Lei Complementar 214/2025, conhecida como “lei-geral do IBS, CBS e IS”, que disciplina alíquotas, split payment, obrigações acessórias e operacionalização do CG-IBS (Comitê Gestor do IBS).
“O Comitê Gestor foi criado para viabilizar a transição federativa de 50 anos prevista na EC 132/2023 e garantir o rápido ressarcimento de créditos acumulados.”, afirma Bernard Appy, Ministério da Fazenda.
Como ficam as transferências de recursos e a transição
Fica instituído o Princípio do Destino, onde a receita do IBS será distribuída fundamentalmente pelo local do consumo e não mais pela origem da produção, como acontece atualmente, com longa transição federativa.
A fase de transição acontecerá de 2029 a 2077, onde parte da receita é arrecadada pelo destino e parte por um coeficiente de participação, calculado a partir da receita média de referência (2019–2026) de cada ente obedecendo a regra da acumulação de ISS + cota-parte municipal do ICMS, incluindo Simples, multas, juros e dívida ativa. Em 2053, por exemplo, a distribuição fica 50% composta pelo destino e 50% composta pelo coeficiente.
Já a base do FPM e do FPE passa a ser absorvido pelo Imposto Seletivo, afetando repasses constitucionais, dependendo da base de arrecadação, com expectativa de baixo impacto, porém aguardando regulamentações para sua melhor previsibilidade.
Neste período o Comitê Gestor do IBS, órgão paritário formado por Estados e Municípios, tem caráter técnico-operacional, e já em instalação, onde alguns Estados já indicaram membros, porém do lado municipal, representações ainda finalizam as indicações de seus representantes.
Quais benefícios existem hoje e quais deixarão de existir
Pelas regulamentações propostas até o momento, o que vem se desenhando é o fim da Guerra fiscal do ISS, muito utilizado pelos municípios como barganha para atrair empresas. O poder de conceder benefícios setoriais de ISS/ICMS se reduz pela lógica do IBS com alíquota uniforme por produto e serviço e distribuição nacional via CG-IBS.
Outra prática que tenderá a não mais ser acionada como mecanismo de atração de investimentos serão os incentivos locais “na origem”. Eles tornam-se ineficazes porque o destino é quem recebe a receita do consumo. Estratégias baseadas em “atrair nota” por domicílio fiscal, perderão efeito.
Outro impacto é na a autonomia plena sobre ISS, que migra para o IBS municipal, com desenho comum e alíquota municipal, esses dois modelos comporão a alíquota total do IBS (municipal + estadual). A lei prevê fixação autônoma da parcela municipal, dentro das diretrizes nacionais.
Exemplo prático no Tocantins
Palmas arrecadou R$ 242,9 milhões de ISS em 2023. Sob o novo modelo, essa base comporá a receita média de referência entre os anos de 2019 a 2026 para definir o coeficiente municipal na transição — e, no longo prazo, a receita virá do consumo efetivo em Palmas.
Os 139 municípios tocantinenses dependem significativamente de FPM, que segue essencial. Em julho deste ano houve repasse nacional com alta de 9% sobre 2024, beneficiando todos no TO.
O Governo do Tocantins por meio da Secretaria da Fazenda já articula preparação técnica através de seminários e debates sobre CG-IBS e PLPs, sinalizando a urgência de qualificar equipes municipais.
Impacto esperado na receita municipal
No curto e médio prazos, ou seja, entre os anos de 2029 e 2030 os impactos terão pouca volatilidade para quem tinha forte recolhimento de ISS e ICMS local, pois o coeficiente de participação suaviza as perdas e ganhos, por isso a importância de fortalecer a arrecadação entre 2025 e 2029. Já municípios com base fraca de consumo local mas alto ISS, ou seja, “na origem” tendem a perder gradualmente relevância dessa estratégia.
No longo prazo, a capacidade de atrair e reter consumo, que é a relação entre atividade econômica e moradores, passa a ser a estratégia mais determinante do que “atrair nota fiscal” para o município. Políticas de desenvolvimento local e ambiente de negócios impactarão diretamente o fluxo do IBS pelo destino, por isso, planejar o desenvolvimento econômico municipal é a saída.
Como os municípios tocantinenses podem se preparar -plano em 10 frentes.
- Mapa de risco e dependência: simular a Receita Média de Referência (2019–2026) obedecendo a formulação: ISS + cota ICMS, incluindo Simples/multas/DA e projetar o coeficiente do município no CG-IBS;
- Time de auditores e fiscalizações inteligentes: formar equipe permanente com foco em crédito do IBS, split payment, cruzamento de NF-e/NFS-e, e-commerce e marketplaces. A LC 214/2025 traz mecanismos como split payment que exigem novo monitoramento;
- Governança com o Estado e o CG-IBS: acompanhar o Comitê Gestor e os atos regulatórios: normas, cronogramas, regras de distribuição e ressarcimento;
- Modernização fiscal: investir em cadastros integrados, conformidade eletrônica, risk scoring e atendimento digital, é hora de fazer a lição de casa;
- Ambiente de negócios & destino: políticas para atrair consumo e serviços, focando na desburocratização, compras públicas locais, turismo de eventos, centralidade regional da saúde e educação, criando dinâmicas econômicas municipais, pois o IBS segue o consumo;
- Educação fiscal do contribuinte local: reduzir informalidade e incentivar emissão de documentos fiscais, inclusive porque alocações por destino dependem de documentação e rastreabilidade, daí a importância também de promover ajustes nos processos internos que recepcionarão os sistemas de NF-e/NFC-e e CT-e, já estão em curso;
- Gestão do caixa de transferências: o FPM permanece crucial. Entender sazonalidade e os novos repasses ligados ao IS ajuda a planejar poupança anticíclica e regra de priorização de despesas;
- Compliance de benefícios e renúncias: revisar legislação local de incentivos de ISS (onde houver) e rotas de obras/serviços para eliminar riscos de glosas e regressividade no novo sistema;
- Capacitação continuada: usar trilhas do Ministério da Fazenda, CRC, CNM e TCEs para treinar equipes em apuração do IBS/CBS, créditos, NFS-e nacional e contabilidade de transição;
- Desenvolvimento regional: coordenar-se com a SEFAZ-TO, consórcios e agências para atrair cadeias de valor e serviços intensivos em mão de obra, reforçando consumo local (base do IBS no destino).
A importância de se preparar para se fortalecer
É crucial que os municípios formem um núcleo de Reforma Tributária com auditoria digital, tributação do consumo, processo administrativo fiscal, contabilidade pública e tecnologia. Boas práticas mostram que modernização fiscal eleva a arrecadação própria de forma sustentável.
Para os municípios tocantinenses, a Reforma não é só “trocar impostos”, é mudar o motor de receita. O que antes se buscava “na origem” passa a depender de gerar consumo no território e operar muito bem os dados fiscais. Quem mapear sua receita de referência, treinar auditores, modernizar a máquina e fomentar um ecossistema local vibrante chegará a 2029/2033 sem sobressaltos e, no longo prazo, capturará melhor a renda do próprio desenvolvimento.
A sobrevivência e o crescimento da receita municipal dependerão, mais do que nunca, de gestão qualificada, auditores bem preparados e políticas públicas voltadas a fortalecer o consumo no território. Quem enxergar essa transição como oportunidade poderá transformar desafios em desenvolvimento local sustentável.
Carlos Assis
Mestre em Desenvolvimento Regional (UFT), especialista em Políticas Públicas para MPEs (Unicamp), contador e empresário. Foi secretário de Finanças de Palmas, diretor do SENAI e atuou por 20 anos no SEBRAE
@carlosassis