O Governo uruguaio apresentou seu principal projeto, a Lei de Urgente Consideração (LUC), composta por 502 artigos que implicam uma profunda reforma do país. Com um formato polêmico, reservado em geral para temas emergenciais e que inclui uma aprovação automática após 90 dias, a LUC não está relacionada com a epidemia do coronavírus e obriga a uma maratona de sessões parlamentares presenciais.
A coalizão conservadora comandada pelo presidente Luis Lacalle Pou considera que a tramitação não deveria ser atrasada por causa da covid-19, por ser um compromisso eleitoral e pela urgente situação que o país enfrenta em temas como a insegurança pública e o equilíbrio fiscal. Vários capítulos da reforma incluem a atribuição de mais poderes às forças de segurança e endurecem o Código Penal, especialmente para os menores de idade. No plano econômico, a LUC estabelece uma nova regra fiscal, com limitações aos gastos públicos, mais rigorosa que a atual, além de diminuir o número de funcionários do Estado e alterar o funcionamento das empresas públicas que controlam setores cruciais como a eletricidade, a água, os combustíveis e as telecomunicações.
Segundo a exposição de motivos apresentada pelo Governo, a LUC tem por objetivo principal, entre outros, “estabelecer uma série de normas legais para fins de recuperar, no menor prazo possível, as condições necessárias para assegurar a convivência pacífica das pessoas que habitam nosso país”.
Quanto às mudanças econômicas, destaca-se a necessidade de impor “um devido controle do gasto público, gerando economias com base na redução do mesmo”. “Não se sustenta mais a situação imperante pela qual o ajuste é realizado pelo setor privado. Quem deve ajustar os custos é o Estado”, aponta o texto.
Mas a LUC é muito mais ampla e implica a revogação de mais de 60 leis adotadas durante os 15 anos de Governo da esquerdista Frente Ampla. Assim, mudam normas que regulam o sistema de educação pública, abre-se um debate sobre as aposentadorias, altera-se a lei de inclusão financeira e são abrangidos temas tão díspares como a criação de um registro de estupradores e a modificação da política de áreas protegidas por razões ambientais.
Máscaras no Congresso
Os primeiros casos de coronavírus no Uruguai chegaram em meados de março, e em 12 de abril o Governo declarou estado de emergência e sugeriu uma quarentena voluntária que paralisou quase completamente a atividade econômica. O confinamento antecipado parece ter contido o contágio de maneira bem-sucedida, pois até 24 de abril haviam sido registradas apenas 12 mortes entre seus 3,5 milhões de habitantes, e o sistema de saúde não dá sinais de colapso. Mas a economia está duramente afetada, com milhares de pessoas desempregadas e prognósticos sombrios para as empresas. Embora os primeiros dados das exportações de matérias-primas sejam relativamente positivos, já que a Ásia reatou suas compras, a economia uruguaia e seu equilíbrio fiscal se sustentam no consumo interno, que desabou sem data para se recuperar.
Neste contexto, o Congresso mergulhou numa maratona legislativa que teve o tiro de largada na quinta-feira passada e exigirá a realização de sessões presenciais das 9h às 18h de segunda-feira a quinta-feira em dezenas de comissões da Câmara e do Senado, a serem realizadas na sede do Palácio Legislativo e eu seus anexos. O parlamento uruguaio não pode tomar decisões ou fazer votações à distância, pois para isso precisaria alterar seu estatuto e contar com a tecnologia adequada, algo que poderia ocorrer no transcurso da tramitação da LUC, segundo parlamentares governistas, que ainda nesta semana apresentaram uma proposta nesse sentido.
As fotos dos últimos dias mostram deputados e senadores cobertos com máscaras ou outros protetores faciais, guardando uma distância de vários assentos entre si. Com uma média de etária de 60 anos (e alguns octogenários), o Senado tem uma importante população de risco. A situação entre os deputados é um pouco melhor, com uma média etária de 50 anos.
Embora a coalizão de direita que governa o país tenha a maioria, a LUC chegou ao Parlamento sem um acordo prévio entre os próprios partidos que a compõem, então são esperadas negociações que poderiam levar a mudanças em 50 a 100 medidas.
A oposição rejeita
A oposição da esquerdista Frente Ampla (FA) rejeita a tramitação de urgência e em bloco das reformas governamentais. Os legisladores alegarão que a LUC é inconstitucional por sua extensão e porque não se justifica o mecanismo de aprovação tácita autorizado em momentos de emergência.
A senadora Lucia Topolansky, da FA, observou que “não há antecedentes de que houvesse uma lei de urgente consideração com tamanha quantidade de artigos” no Uruguai, e considera que a LUC abre “um antecedente muito perigoso”, porque se “transcorrerem cinco anos, um partido X ganhar as próximas eleições, tiver sua maioria e mandar uma lei de urgente consideração com 3.000 artigos, acabou-se o Parlamento”.
Mas, na atual etapa, a oposição tem poucas ou nulas chances de frear a lei, já que o governismo conta com maioria nas duas Casas. Setores da Frente Ampla propõem uma campanha de coleta de assinaturas para convocar um referendo revogatório e anulá-la em bloco uma vez aprovada.
Organizações de todo tipo expressaram suas críticas à LUC. O Unicef (órgão da ONU para a infância), por exemplo, considera que o projeto de lei contradiz os princípios internacionais de proteção aos direitos humanos e infantis, pois aumenta de 2 para 10 anos as penas da prisão para menores e elimina o regime de semiliberdade, entre outros. Segundo um documento do Unicef enviado aos parlamentares, o governismo não está levando em conta a clara diminuição da participação dos adolescentes nos delitos registrados nos últimos anos.
Em outro âmbito totalmente diferente, juristas advertem contra as mudanças da atual Lei de Inclusão Financeira votada pelo Frente Ampla para obrigar a que os pagamentos de salários e outros transações ocorram por meios eletrônicos. A LUC revoga essas disposições e autoriza as compras de bens em espécie nas transações de até 10.000 dólares; além disso, reduz os mecanismos de controle sobre os agentes na cadeia de pagamentos. Neste contexto, o Uruguai poderia voltar a estar na mira de organismos como a OCDE, que no passado situaram ao país em sua lista cinza.
A situação é tensa com a central única de trabalhadores, a PIT-CNT, já que a LUC restringe certos capítulos do direito ao protesto e, se tramitar em plena epidemia da covid-19, os sindicatos terão pouca margem para se mobilizar.