Existe uma área de atuação médica que é fundamental para o tratamento do sofrimento humano, mas que por décadas foi relegada à um segundo plano tanto pelos colegas médicos como pela sociedade e pelas políticas de saúde pública e privada – os cuidados paliativos.
Cuidados paliativos são as medidas introduzidas para diminuir o sofrimento do paciente e familiares diante de uma doença grave, por vezes muito incapacitante ou até mesmo terminal.
Diversas doenças podem chegar a esse ponto – onde não há perspectiva de melhora e o sofrimento é ou pode se tornar intolerável, excruciante. No inicio dessa subespecialidade era muito mais fácil de entender a sua aplicação em pacientes com neoplasias (câncer) em estágio avançado já sem protocolos cirúrgicos, quimioterápicos, radioterápicos, etc viáveis ou nos pacientes com comprometimento neurológico grave como demências avançadas, esclerose lateral amniotrófica e suas variações avançadas, sequelas neurológicas graves de várias causas( traumatismo craniano, ferimentos por arma de fogo, pós parada cardiorrespiratória prolongada, etc) – pois o paciente vai tendo uma piora progressiva e linear do quadro em meses aou anos já com sofrimento de grau intenso e se pode preparar a família e o paciente pra isso. Existem outras doencas como as pulmonares (enfisema,bronquite crônica tabágica, etc) e cardíacas (insuficiência cardíaca avançada, angina refratária) em que o quadro pode oscilar com períodos de piora e melhora mas sempre em queda de maior ou menor grau durante o tempo, em que a determinação desse ponto onde o sofrimento se torna muito maior que o prazer de viver requer um pouco mais de vivência – mas sim, claro, existem critérios bem explicados para diversas patologias de todas as áreas.
Como disse até por preconceito mesmo e desconhecimento essa área tão importante ficou de lado, e por décadas a distanásia (prática pela qual se prolonga, através de meios artificiais e desproporcionais, a vida de um enfermo incurável) acontecia sem muito questionamento – mesmo com diversos trabalhos mostrando que os pacientes que estão sob cuidados paliativos vivem mais tempo, com maior qualidade de vida e menor custo que os que estão com práticas desproporcionalmente exageradas e por vezes fúteis frente ao estado geral do paciente e da doença.
“Como assim doutor você acha que não temos de intubar meu pai ? Como não se beneficia de cateterismo ? Mas se sedar meu pai não vai falecer na hora ?” Se eu contasse pra vocês quantas vezes eu escutei isso em entrevistas, visitas de pacientes e familiares … E está tudo bem !!! Como entender que o fim se aproxima ? Que a limitação da doença já não é tolerada ? Que o seu pai não quer sentir mais dor nenhuma ?? Que seu filho tem uma doença cromossômica grave cuja síndrome não é compatível com a vida ? É difícil mesmo, principalmente nos mais jovens – acho que os colegas que praticam cuidados paliativos pediátricos são verdadeiros heróis mesmo e merecem total admiração.
Tudo depende da compreensão da doença, dos anseios da familia, das suas crenças, das opções e limitações terapêuticas que a medicina oferece. O apoio da equipe multidisciplinar muitas vezes tem mais importância que a equipe médica – agradeço imensamente a todos que trabalharam comigo ao longo dos anos – é uma arte tão bonita quanto triste, mas quando feita com carinho e dedicação só quem faz sabe o poder de realização pessoal que vem dela !
Em tempos de COVID 19, para evitar a transmissão do vírus, que em outros países como China e Itália se deu muito dentro dos ambientes hospitalares, a visita aos pacientes pelos amigos e familiares foi muito restringida – o abraço, o olho no olho, a presença importante deles quase se extinguiu – é só uma fase e vai passar tenho certeza – mas ficou muito mais difícil fazer essa abordagem com todo zelo e atenção devida. Com a empatia necessária. Temos o contato por vídeo chamada, ajuda, mas penso que nos cuidados paliativos precisamos de mais.
Uma sugestão seria ambulatorialmente uma abordagem maior e se possível mais precoce das cartas de diretivas de vida – onde o paciente e família se planejam para por exemplo: “tenho um câncer de esôfago incurável – já estou com muito sofrimento doutor e não queria que fosse intubado, operado, ir para UTI se por piora da doença houver necessidade!”
Sim, isso é possível tanto juridicamente quanto pelo aspecto de ética médica e quando bem feito poupa muito sofrimento desnecessário – mas esse dialogo antecipativo é pra mim o mais difícil – mas também muito oportuno na atual situação que vivemos.
Uma equipe poderia receber a família fora do hospital para essas discussões também, outra alternativa que pratico com meus pacientes já há um bom tempo.
Fica aqui um alerta – alguns países onde as resoluções são mais baseadas no racional que no nosso país introduziram cuidado paliativo compulsório nas localidades onde o sistema de saúde estava em colapso (grande exemplo Lombardia na Itália) – definindo que já que não havia vagas de UTI, ventiladores mecânicos para todos, os pacientes mais idosos ou com muitas comorbidades não seriam intubados nem levados a UTI para poderem salvar os que tinham maior chance de recuperação – medicina de catástrofe e guerra, também com respaldo ético e jurídico- mas que a população brasileira e o médico que os fala não tem condições psicológicas de lidar de forma amena com isso – e esse é pra mim o maior motivo das políticas de isolamento para achatar a curva de casos de COVID 19.
Conversem com seus médicos, familiares que tenham doenças crônicas e debilitantes – vocês irão se surpreender como muitos gostariam de deixar registrado quais as suas opções durante o processo de finitude – que virá mais cedo ou mais tarde para maioria de nós. Eu gostaria de ficar no quarto com minha família – e vocês ?