BC: superendividamento afeta de forma duradoura qualidade de vida

Clientes bancários superendividados nem sempre tornam-se inadimplentes, mas vivem em um ciclo vicioso de tomar mais crédito para conseguir pagar os empréstimos antigos e manter as contas em dia. A avaliação é de especialistas que participaram de seminário virtual para debater os resultados do Relatório de Endividamento de Risco no Brasil, elaborado pelo Banco Central (BC).

Segundo os dados do BC, no Brasil, a população com carteira de crédito ativa atingiu 85 milhões de tomadores em dezembro de 2019. Desse total, 5,4% ou 4,6 milhões de tomadores estavam em situação de endividamento de risco, ou seja, devem às instituições financeiras mais do que podem pagar.

O BC destaca que a população de renda média – entre R$ 2 mil e R$10 mil – e com idade acima de 54 anos é financeiramente mais vulnerável. “Tal recorte se justifica pelo maior nível de relacionamento bancário dessa população, com acesso a uma maior gama de produtos financeiros e a maiores limites de crédito”, diz o relatório.

No relatório o BC define como superendividamento “o resultado de um processo no qual indivíduos e famílias se encontram em dificuldade de pagar suas dívidas a ponto de afetar de maneira relevante e duradoura seu padrão de vida”. Segundo o BC, os endividados de risco podem estar simultaneamente superendividados. “Há possivelmente uma propensão a que os tomadores aqui identificados como endividados de risco se encontrem, simultaneamente, em situação de superendividamento ou que, eventualmente, possam chegar a esse estágio se ações preventivas e de correção não forem tomadas”, diz o relatório.

Comprometimento de renda

A juíza Caroline Santos Lima, coordenadora do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e de Cidadania das Execuções Fiscais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), destacou que cidadãos com renda alta são os que mais acionam a Justiça, mas o superendividamento atinge a todas as classes sociais. “Nestes últimos 5 anos de tratamento e prevenção, observamos pessoas com renda elevada com nível de comprometimento de renda absurdo e com baixíssima qualidade de vida”, disse. Segundo ela, o acesso à informação e a advogados contribuem para que pessoas com alta renda procurem mais a Justiça. Entretanto, ela disse que é preocupante a situação de pessoas de todas as classes de renda, principalmente os idosos.

Ciclo vicioso

A defensora pública Patrícia Cardoso Maciel Tavares, coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, disse que o superendividamento geralmente começa com dívidas no cartão de crédito, cheque especial e crédito direto ao consumidor com débito em conta. “Como são linhas de crédito mais caras, o cliente acaba sendo aconselhado a trocar por dívida mais barata e aí troca por consignado”, disse. Ela acrescentou que como as parcelas do crédito consignado são pagos com o desconto no salário, o consumidor com a renda reduzida acaba voltando a recorrer a outro tipo de crédito para conseguir manter as contas em dia. “Como são formas automáticas de pagamento, não consegue parar de pagar para poder se reorganizar, com aconselhamento”, destacou Patrícia Tavares.

A defensora pública ressaltou ainda que as pessoas nesse ciclo de refinanciamentos têm a renda quase toda direcionada aos bancos. “Quando começa a renegociar, a pessoa sequer fica com o proveito da renegociação. Tudo que toma de crédito devolve no mesmo instante para a instituição financeira. É muito sórdido. Isso faz com que todo o dinheiro circulante desses milhões de superendividados fiquem somente em um setor da economia que é o setor financeiro, ao passo que poderia investir em comércio e serviços”, destacou.

Renegociações

Em meio à pandemia de covid-19, que tem levado à redução da renda de famílias, a renegociação de dívidas tem crescido. De acordo com dados do BC de maio, o saldo das operações de composição de dívidas, que é a renegociação de mais de uma modalidade de crédito em conjunto, chegou a R$ 50,448 bilhões em maio, crescimento de 6,6% no mês e de 40,6%, em 12 meses. As novas concessões chegaram a R$ 9,335 bilhões, em maio, com alta de 7,7% no mês e de 80,1%, em 12 meses.

O diretor de Autorregulação e Relações com Clientes da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Amaury Oliva, disse que o superendividamento não traz benefícios para os bancos. “O endividamento excessivo é ruim para todos: cidadão, estado, os bancos”, argumentou. Ele afirmou que a inadimplência gera incerteza e eleva o risco de concessão de crédito, o que por consequência, torna os empréstimos mais caros. “Hoje a inadimplência responde por mais 37% do spread bancário [diferença entre taxa de captação de recursos pelos bancos e a cobrada dos clientes]”, disse.

Projeto de lei

O diretor de Relacionamento, Cidadania e Supervisão de Conduta do BC, Maurício Moura, e Patrícia Tavares defenderam a aprovação do projeto de nº 3515, que tem o objetivo de prevenir e tratar o superendividamento.

Para a defensora pública, o projeto não tem as palavras “pandemia” e “urgente”, mas a crise gerada pelo novo coronavírus torna a aprovação da legislação uma “necessidade imperiosa”. Ela argumentou que as empresas receberam socorro para situações de crise e é preciso pensar também nas pessoas físicas, dando a elas condições de organizarem suas finanças.

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