Alemanha anuncia ter controlado coronavírus enquanto França ensaia estratégia para deixar quarentena

Berlim / Paris – 18 ABR 2020 – 15:27 BRT

coronavírus é um teste de estresse para países e sistemas políticos. Também o é para diferentes modelos de organização estatal. A Alemanha e a França, o país federal e o país centralizado por excelência na União Europeia, geriram a crise com resultados díspares: 4.110 mortes na Alemanha e mais de 18.000 na França, de acordo com a mais recente contagem deste sábado. A descentralização alemã, fundada na cooperação entre os membros da federação, transfere o peso das medidas de saúde aos länder, que entram em acordo com o Governo federal para acertar as linhas gerais das restrições e os centros de pesquisa científica são espalhados por todo o país, que também possui uma ampla rede de hospitais locais. A centralização francesa, que concentra o poder em Paris e no presidente, permitiu a tomada rápida de decisões, mas a onipotência do Estado pode ter elevado os custos dos erros e a imprevisão.

ALEMANHA

Jens Spahn, ministro da Saúde alemão, anunciou nesta sexta-feira que a pandemia da covid-19 está atualmente “sob controle” no país. A frase sela o consenso de que a Alemanha conteve o vírus, ao menos por enquanto, de maneira mais efetiva do que outros países europeus. Ainda é cedo para saber quais foram os papéis que desempenharam nesse ainda precário sucesso o sistema federal, o investimento em gasto sanitário e pesquisa no passado, a detecção precoce do vírus e até a sorte. Mas a verdade é que a tomada de decisões políticas e a gestão na Alemanha diferem substancialmente de outros países do entorno como a França e a Espanha. Na Alemanha não foi declarado nada semelhante ao estado de alarme e o Governo central não decide e não executa unilateralmente as medidas de contenção do vírus. São os länder que têm uma responsabilidade crucial, de acordo com o modelo do sistema federal alemão e a norma que regulamenta a propagação de infecções. Essa pluralidade política na tomada de decisões, muitas vezes desordenada e complexa, pode ser vantajosa à uma população que viu seus direitos e liberdades diminuídos.

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A Alemanha hoje é o quinto país em número de contágios, 137.439, mas o número de mortos continua sendo comparativamente baixo: 4.110, de acordo com os dados do oficial Instituto Robert Koch. O sistema de saúde, principalmente, não entrou em colapso. Desde o começo da epidemia, a Alemanha aumentou de 28.000 a 40.000 o número de leitos em unidades de tratamento intensivo. Na sexta-feira, 11.312 estavam disponíveis, de acordo com o instituto. A curva há dias parece ter achatado, sem que tenha ocorrido um confinamento total e permitindo que cada Estado federado adeque às suas necessidades as diretrizes de isolamento acertadas com o Governo federal.

A divisão de funções e competências entre o Estado federal e os länder fragmentou a tomada de decisões em um momento em que a celeridade e a coesão têm especial relevância. A norma em torno da qual a divisão gira hoje atribui aos Estados a faculdade de adotar as medidas necessárias para combater a infecção. Desde a explosão da epidemia, a coreografia política na Alemanha é sempre a mesma. A chanceler alemã, Angela Merkel, preside a videoconferência com os chefes de Governo dos Estados, em que se decidiu por exemplo a regra de sair no máximo em grupos de dois, com um metro e meio de distância. O Governo recomenda e coordena e cada Estado decide quando e como executa as medidas. Um exemplo é a abertura gradual das escolas, que começará em 4 de maio e que a Baviera, o land mais afetado pela pandemia, atrasará em uma semana.

O processo, do qual participam representantes dos diversos partidos que governam nos länder, é muito mais complexo e dilatado do que uma decisão executiva do Governo central, como diz Ursula Münch, diretora da Academia de Educação Política em Tutzing, Baviera, mas também possui vantagens. Para começar, porque a descentralização significa que a Alemanha tem institutos de pesquisa e universidades de referência espalhados por todo o país e com um papel científico destacado nessa crise. Mas principalmente porque, de acordo com Münch, em um momento excepcional é importante que diferentes poderes executivos “sejam contrapeso e controlem uns aos outros e tragam diferentes perspectivas na tomada de decisões”.

Essa pluralidade e maior proximidade das autoridades regionais com os governados ganha significado diante da maciça restrição de direitos e liberdades imposta. “Especialmente com nosso passado, é muito importante à população que não seja somente uma pessoa a decidir em Berlim, e sim que existam 17 pessoas que compartilhem o poder”, interpreta Münch. Mesmo assim, a cientista política intui que “após essa crise ocorrerão mudanças legais” e menciona sistemas como o suíço, no qual em casos de pandemia como a atual, o Governo federal assume funções maiores.

Além do processo de tomada de decisões, os especialistas atribuem ao sistema de saúde alemão, também descentralizado, parte do sucesso diante da crise. Laboratórios de todo o país foram alertados e instruídos por Berlim em janeiro sobre a necessidade de realizar testes diagnósticos. Ricarda Milstein, do centro de economia da Saúde de Hamburgo, diz que “o Governo central adotou um papel mais ativo. A boa coordenação existente entre os diversos atores me surpreendeu”, diz em referência à reciprocidade do seguro obrigatório e as associações de profissionais de saúde.

A especialista atribui ao sistema federal deficiências como a impossibilidade, em sua opinião, de combinar no passado grandes decisões estratégicas no sistema de saúde. E lembra que, ainda que a Alemanha tenha muitos leitos nos hospitais, o problema é a falta de profissionais de saúde para atendê-los. Além disso, diz Milstein, uma ampla rede de pequenos hospitais não quer dizer que todos têm qualidade suficiente e sequer que sejam necessários e bem divididos no território. Ainda assim, pensa que a grande quantidade de recursos que a Alemanha destinou comparativamente à saúde, de acordo com a contagem da OCDE e à pesquisa agora dá seus frutos.

FRANÇA

Quando na segunda-feira passada Emmanuel Macron anunciou o fim progressivo do confinamento da população a partir de 11 de maio, a notícia surpreendeu todos os escalões do Estado. A maioria dos ministros soube quinze minutos antes do discurso à nação, de acordo com o Le Monde. O restante, da prefeitura de Paris à do povoado mais afastado da capital, descobriu ao mesmo tempo que os mais de 36 milhões de franceses que viram pela televisão.

A França é assim. O país em que o presidente adota sozinho medidas que mudam o rumo da sociedade. O país em que o chefe de Estado e a elite tecnocrática que o cerca —altamente preparada, mas pouco diversificada e presa nas inércias de uma cultura burocrática particular— concentra mais poder do que qualquer outra grande democracia ocidental. O país em que as decisões são tomadas em Paris e no qual o princípio igualitário da Revolução de 1789 continua sendo um freio à descentralização real e à aceitação de exceções regionais.

O coronavírus —que já causou mais de 18.000 mortes na França e a colocou no espectro de países europeus mais atingidos, um pouco atrás da Itália e da Espanha —colocou à prova a capacidade do modelo francês para responder a uma crise de proporções insólitas.

O resultado é ambivalente. “É a questão das máscaras, dos testes, dos leitos de hospital, das máquinas de reanimação: o número não é o suficiente”, diz Dominique Reynié, diretor geral do laboratório de ideias Fondapol. “O Estado centralizado e poderoso, com um chefe eleito pelo povo, quando surge uma crise de verdade demonstra que não está preparado. Acho que isso deixará rastro. Talvez possa levar a uma recomposição política mais leve, mais descentralizadora, mais girondina”, acrescenta em alusão aos girondinos que, durante a Revolução Francesa, se opunham aos jacobinos, que eram centralizadores.

Ao mesmo tempo, a organização centralizada permitiu reagir com rapidez nos momentos mais complicados. A mobilização de recursos econômicos e a adoção de leis de exceção foram imediatas. E, na batalha sanitária, os trens civis e aviões militares retirando doentes da Alsácia —a área mais afetada, ao lado da Île-de-France, a região parisiense— para descongestionar hospitais e levá-los a outros pontos do hexágono projetaram a imagem de um Estado funcionando como um relógio de precisão.

“Na França não existiu um problema de colapso do sistema de cuidados intensivos”, diz François Heisbourg, conselheiro do laboratório de ideias International Institute for Strategic Studies. “O sistema hospitalar não deixou de funcionar e não ocorreram problemas substanciais como em Madri e Barcelona, e não precisamos lidar com problemas de solidariedade no interior do país”. Foi preciso dobrar o número de leitos em UTIs, chegando a 10.000.

“O sistema napoleônico”, diz Heisbourg, “funcionou muito bem, principalmente em relação à divisão de meios em função das áreas de tensão da pandemia”. Heisbourg usa o termo “napoleônico” para se referir ao sistema centralista ou jacobino. Mas pondera: “O sistema napoleônico é incômodo quando se cometem erros. Porque, dessa forma, as consequências desses erros são napoleônicas. Erros como não começar a realizar os testes o quanto antes, rápida e maciçamente eram evitáveis. As consequências são enormes. Enquanto em um sistema descentralizado, se alguém, em um land e uma comunidade autônoma, comete um erro, este pode ficar relativamente reduzido em escala nacional.

Um dos erros sobre os quais a França debate insistentemente por esses dias é a decisão de não renovar um estoque de máscaras que superava 1,7 bilhão de unidades em 2009. Outro, comum em outros países, é a lentidão da máquina estatal em reagir quando as notícias da epidemia chegavam da China em janeiro e, no final de fevereiro, da Itália.

O fim do confinamento também coloca questões. Deve ser o mesmo para todos? Para a Alsácia e Paris e regiões em que o vírus mal chegou? “A data de 11 de maio de maneira uniforme em todo o território não corresponde à dinâmica da epidemia, que não é igual nas diferentes regiões francesas”, diz o epidemiologista William Dab, que foi diretor geral de Saúde entre 2003 e 2005. “As epidemias são derrotadas na linha de frente, não nos gabinetes do ministério”.

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