Animais selvagens são perigosos. Automóveis, aviões ou trens são perigosos. O fogo e a água são perigosos. Armas de fogo são perigosas. O sal de cozinha é perigoso. Ou seja, quase tudo é um perigo. Entretanto, a população do mundo cresce continuamente, a esperança de vida aumenta, apesar de vivermos cercados de perigos. Alguma coisa não está batendo, certo? Para entender, precisamos analisar as diferenças entre perigo e risco.
Os conceitos de perigo e risco são diferentes. Um leão faminto é um perigo para um ser humano? Sim. Porém, em uma jaula segura de um zoológico, o risco é baixo. E se fosse no centro de São Paulo? Afinal, um leão faminto poderia fugir do circo. Sim, mas quantos circos existem? Quantos têm leões? Quantos leões fogem do circo? Ou de um zoológico? Como as probabilidades de cada evento são baixas, na prática o risco é insignificante. Portanto, um leão é um perigo para o ser humano, mas o risco de ataque de um leão a uma pessoa que caminha pelo centro de São Paulo é baixo.
Para diferenciar perigo de risco, a Ciência dispõe de rígidos protocolos, testados e validados (http://bitly.ws/shef). Eles se baseiam em algoritmos sólidos, que calculam o risco efetivo, com base nas probabilidades da ocorrência de exposição a um perigo real. Com base na análise do risco, pode-se administrá-lo, minimizá-lo ou eliminá-lo.
A avaliação de risco é um procedimento científico. Consiste em aplicar modelos matemáticos, lastreados em bases de dados, que determinam os efeitos da exposição de um indivíduo, ou de um conjunto deles, aos perigos (http://bitly.ws/shek). Assim, é possível medir o risco de efeitos perniciosos de um medicamento à saúde humana. O gerenciamento do risco determina quais procedimentos devem ser tomados para proteger o paciente. São as instruções que aparecem na bula dos remédios e na receita do médico. Tal e qual ocorre com a bula do pesticida e a receita agronômica.
Substâncias tóxicas
Um instituto especializado elencou as 15 substâncias consideradas mais tóxicas, utilizando diversos critérios, em especial o número de mortes associados a cada uma delas (http://bitly.ws/sg5T). A lista, por ordem de toxicidade, com alguns exemplos de marcas comerciais (quando for o caso), é: acetaminofen (tylenol), etanol (bebidas alcoólicas), benzodiazepinas (diazepam, xanax, valium, klonopin), anticoagulantes (rivaroxaban, warfarin, xarelto, heparina), antidepressivos (terazosina, cymbalta, wellbutrin, prozac, zoloft), anti hipertensivos (doxazosina, hytrin, cardura, minipress), bromocriptina (parlodel), claritromicina (biaxin), clozapina (pinazan, xinaz), cocaína, colchicina (colchis), formulado de acetaminofen, dextrometorfan e doxilamina (nyquil, robitussin, theraflu), digoxin (lanoxin), heroína (morfina) e opióides (oxicodona, percocet, vicodin, oxycontin).
Verifica-se que, com exceção de etanol (que também está presente na formulação de muitos medicamentos), cocaína e heroína, todos os demais são medicamentos largamente utilizados para tratamento de dor de cabeça, gripe, rinite, sinusite, hipertensão, problemas cardíacos e outros. Mesmo a heroína é utilizada como medicamento, sendo a base da morfina.
Ou seja, vale o conceito estabelecido por Paracelso: a diferença entre remédio e veneno é a dose. Até determinado limite, os medicamentos constantes da lista acima são benéficos à saúde humana. Porém, se a dose máxima considerada segura for superada, surgem os efeitos colaterais indesejados (toxicidade), que podem, no limite levar ao óbito. O estabelecido para remédios também vale para outras substâncias, como os pesticidas agrícolas, conforme demonstraremos a seguir.
Dose Letal Média (DL50)
Os órgãos oficiais dos governos são responsáveis por estabelecer o risco de uma substância, lastreado em informações científicas, que pode ser reavaliado com base em novas informações ou na alteração do método de análise ou de cálculo. As reavaliações quase sempre são mais severas e restritas do que a situação anterior, nunca menos.
Existem diversos parâmetros toxicológicos, destinados a conferir dimensão ao risco de determinado perigo. O parâmetro toxicológico mais difundido, e fácil de entender, é a Dose Letal 50 (DL50). Ela significa “a dose de uma substância química, administrada de uma única vez, que levou a óbito 50% das cobaias em testes de laboratório” (http://bitly.ws/sg5F). A DL50 é uma expressão da toxicidade aguda, aquela que se manifesta em curto período de tempo após a exposição.
A DL50 é expressa em miligramas da substância por quilo de peso vivo da cobaia (mg/kg), sendo mais comumente referida por partes por milhão (ppm). Assim, a nicotina é considerada altamente tóxica (DL50= 50 ppm), bem como a cafeína (192 ppm). Menos tóxicos são o paracetamol (3.000 ppm) e a deltametrina (5.000 ppm), um inseticida agrícola, também usado para controle de piolhos em seres humanos.
De acordo com o órgão oficial do governo dos Estados Unidos (https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/), o valor de DL50 , via ingestão oral, para algumas das substâncias listadas anteriormente é: acetaminofen (338 ppm), diazepam (278 ppm), xarelto (300 ppm), terazosina (5.500 ppm), doxazosina (1.000 ppm), bromocriptina (1.000 ppm), claritromicina (1.270 ppm), clozapina (251 ppm), cocaína (96 ppm), morfina (335 ppm), colchicina (6 ppm) e oxicodona (416 ppm).
Ingestão Diária Aceitável (IDA)
A IDA é conceituada como “a quantidade de uma substância química que pode ser ingerida diariamente por um indivíduo, durante toda a sua vida, sem risco apreciável à sua saúde, à luz dos conhecimentos disponíveis na época da avaliação”. A IDA mensura a toxicidade crônica, cujos efeitos costumam aparecer no longo prazo, por exposição continuada. Pelo conceito exposto, não são esperados efeitos adversos, pela exposição continuada à IDA, mesmo que isso ocorra durante toda a vida de um indivíduo.
O cálculo da IDA é lastreado em rigorosos e repetidos testes de laboratório, nos quais doses crescentes da substância em teste são administradas a cobaias. A maior dose que não ocasionou alterações metabólicas nos organismos em teste é dividida por 100. Assim, a IDA representa apenas 1% da dose que não causou qualquer problema de saúde em cobaias. Porém, é importante lembrar que a dose que não causou qualquer problema normalmente equivale a 1-10% da dose imediatamente superior, aquela que ocasionou alguma alteração em alguma das cobaias. Logo, a IDA representa 0,1-0,01% da dose que poderia, eventualmente, ocasionar algum problema à saúde. Dito de outra maneira, para existir a probabilidade de eventuais danos à saúde, a dose deveria ser 100 a 1.000 vezes maior do que a IDA.
Limite Máximo de Resíduos (LMR)
A preocupação com os riscos não se esgotou, é necessário garantir que o cidadão nunca vá ser exposto à dose calculada como sendo a ingestão diária aceitável (IDA). Para tanto existe o Limite Máximo de Resíduos (LMR), um conceito obrigatório no uso de pesticidas na agricultura. Trata-se do “valor máximo de resíduo de uma substância admitido legalmente em um alimento, considerando a sua aplicação adequada (seguindo todas as Boas Práticas Agronômicas), desde sua produção até o consumo”.
Obrigatoriamente, o LMR leva em consideração a IDA. Dessa forma, todo o alimento que contenha resíduos inferiores ao LMR não oferece qualquer risco à saúde humana, à luz dos conhecimentos atuais, mesmo se ingerido diariamente, durante toda a vida do indivíduo. O objetivo desses conceitos (DL50, IDA e LMR) é assegurar a proteção dos consumidores de alimentos em relação a qualquer risco toxicológico decorrente do uso de pesticidas nas lavouras.
E na prática?
Nada melhor que um exemplo do nosso cotidiano para entendermos como esses parâmetros protegem o cidadão. Consideremos o controle de uma praga da batata. Suponhamos uma aplicação do inseticida deltametrina (aquele mesmo usado para controle de piolhos em seres humanos), efetuada em conformidade com a lei e com as boas práticas agrícolas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a deltametrina apresenta DL50 oral de 5.000 mg/kg (ppm) de peso corpóreo e IDA de 0,01mg/kg de peso corpóreo (http://bitly.ws/shcs) e LMR de 0,01mg/kg de batata, em conformidade com a ANVISA (http://bitly.ws/shct). Suponhamos também o pior caso possível: que toda batata sempre tenha o máximo de resíduo permitido.
A ingestão diária de uma pessoa que pese 80kg, com garantia de não haver qualquer risco à sua saúde (IDA), será de 0,8mg/dia do inseticida (0,01mg/kg x 80kg). Como cada quilo de batata tem 0,01mg de resíduo, pode-se ingerir 80kg de batata por dia (0,8mg que podem ser ingeridos ÷ 0,01mg/kg de batata), durante toda a vida do indivíduo, sem que haja qualquer problema de saúde devida à presença de resíduos. Em contrapartida, não é possível assegurar que não haja risco à saúde pela ingestão diária de 80kg de batata, mesmo sem resíduos de pesticidas!
Considerando o mesmo resíduo máximo de 0,01 ppm, para que seja atingida a DL50, seria necessário consumir 500.000 kg de batata de uma única vez (5.000 mg/kg / 0,01 mg/kg). Isto se todas as batatas contivessem o resíduo máximo.
Percepção do risco
Ao contrário do risco –um cálculo científico e preciso – a percepção do risco é totalmente subjetiva, seja de uma pessoa isolada ou de um conjunto delas, baseada em avaliações parciais ou enviesadas, sem fundamentação científica, normalmente fundada no desconhecimento e no alarmismo, comportamento descrito na psicologia de populações como associado ao medo.
Por exemplo, valendo-se de uma percepção de risco sem base factual, um insano qualquer pode infundir uma comoção incontrolável em uma determinada comunidade, veiculando a informação de que perpetrará um ataque de enormes proporções, mesmo estando incapacitado de fazê-lo. A mera ameaça é suficiente para equalizar risco e perigo, por uma percepção de risco sem fundamentos factuais.
Um exemplo clássico de percepção de risco errônea é trocar uma viagem de avião por automóvel, que não possui qualquer fundamento científico, posto que as estatísticas demonstram que os aviões representam o meio de transporte mais seguro. Estatísticas calculadas para a população dos Estados Unidos (http://bitly.ws/shcN) indicam que a probabilidade de uma pessoa morrer em acidente de avião é de 1 em 11 milhões; já a probabilidade morrer em acidente de carro é 1 em 5.000, ou seja, 2.200 vezes maior.
Percepção enganosa
O perigo é um conceito essencialmente qualitativo, trata-se de uma ou mais condições que têm o perfil de causar ou contribuir para que possa existir um risco associado. Já o risco é a probabilidade de um evento acontecer, seja ele uma ameaça, quando negativo, ou oportunidade, quando positivo. Um risco somente ocorre quando houver exposição ao perigo.
Também existe a percepção diferencial do risco, baseada em desconhecimento, vieses e visões pessoais em função de diferentes papéis desempenhados na sociedade. Com respeito aos pesticidas, observam-se duas percepções antípodas: a de alguns agricultores, que desprezam o risco e não tomam as medidas necessárias para se proteger. Isso os torna suscetíveis a acidentes na manipulação e na aplicação de agrotóxicos, engrossando as estatísticas de intoxicação.
E há o seu oposto, que é a percepção transmitida à população leiga, mormente urbana, de que o risco é elevadíssimo e que alimentos produzidos com o uso de pesticidas estão sempre envenenados e que, inexoravelmente, causarão problemas de saúde a quem os consome. Transmite-se a ideia de que pesticidas são os maiores responsáveis por casos de intoxicação e morte. A percepção é reforçada pelo uso de termos como veneno ou agrotóxico para identificar um pesticida, que é o termo internacionalmente reconhecido.
Pela percepção de risco enviesada, um remédio será sempre benéfico, não causa problemas de saúde. Já um pesticida é um veneno, sendo causa de intoxicação e morte. Exemplos práticos, com grandes números, mostram como essa percepção é totalmente infundada.
Estatísticas de intoxicações
De acordo com o instituto Poison, que sintetiza as estatísticas de casos de envenenamento nos Estados Unidos, os cinco principais grupos de substâncias causadoras de envenenamento de adultos, por ordem de número de casos em 2020 (última estatística disponível), são: 1. Remédios com 39,2 % (analgésicos 10,7%; sedativos 7,8%; antidepressivos 6,9%; medicamentos cardiovasculares 6.7%; anticonvulsivos 3,8%; e antistamínicos 3,3%); 2. Produtos de limpeza com 7,3%; 3. Álcool com 4,6%; 4. Cosméticos e produtos de beleza com 3,3%; 5. Pesticidas com 3,0% (http://bitly.ws/shd7).
No Brasil, os casos de intoxicação são compilados pela Fiocruz, por meio do Sinitox. As últimas estatísticas disponíveis são de 2017 (http://bitly.ws/shdx) e mostram que as principais causas de intoxicação foram: 1. Animais peçonhentos (35,25%); 2. Medicamentos (27,11%); 3. Produtos domissanitários (6,11%); 4. Animais não peçonhentos (6,63); 5. Outras causas (6,12); 6. Produtos químicos industriais (3,78%); 7. Drogas de abuso (3,60%); e 8. Pesticidas de uso agrícola (3,35%).
Pelos exemplos de Brasil e Estados Unidos, medicamentos causam muito mais problemas de intoxicação e de óbitos do que pesticidas de uso agrícola.
Em conclusão, o mundo seria um lugar muito melhor para se viver se tanto agricultores quanto consumidores utilizassem conceitos científicos de risco para suas decisões, em vez de confundir perigo com risco. E se ambos não se deixassem envolver por percepções de risco sem qualquer respaldo da Ciência.
Por Decio Luiz Gazzoni, Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja e membro do Conselho Científico Agro Sustentável